Fecha os olhos e conta devagar. 1, 2, 3, 4, 5… 10… 20… 30… 31. A cada número, um ano de vida. Conta devagar e lembra-te de quem és, de onde vens. Pensa para onde queres ir.
2017, o ano em que, com 31 anos, resolvi mudar tudo. Mudei de casa – e saí finalmente da casa dos meus pais –, mudei de emprego e terminei um namoro de quase uma década. Tudo de seguida, em poucos meses. Um encadeamento pouco concertado, com guinadas dignas de um filme de ação de Hollywood e aqui estou eu, fora da zona de conforto e à procura de terra firme para assentar um novo caminho.
Mudei e, na verdade, nada nem ninguém nos prepara para o choque. Ninguém nos ensina que sair dos carris de tantos anos é um processo que dói. Ninguém nos prepara para os choros constantes, para as dúvidas nas caras de quem nos está próximo, para as dúvidas que persistem em nós. Ninguém nos avisa que o coração aperta quando olhas para o lado e os teus amigos, da tua casta maravilhosa dos anos 80, orientam-se entre convites de casamento e fraldas. Logo o teu coração, que desde sempre tenta fugir a 7 pés de convenções e expetativas sociais. Logo o teu, mas está tão apertado e mal consegues respirar.
Mudei. E ainda estou nessa viragem. O mundo surge-me a uma velocidade estonteante. Quase como se me tivesse feito a uma onda, mas ainda não sei bem se me mantenho em cima da prancha ou não. Talvez seja isso, mas na verdade nunca fui feita para desportos. Não faço ideia do que é surfar.
Mudei e, descubro agora, tudo é incerto. Há mil pensamentos estilhaçados que me passam pela mente, todos os dias, a todas as horas, a todos os segundos. Morro de medo de me desiludir e desiludir quem mais gosto. Morro de medo de perder o pouco que conquistei até agora. Morro de medo de deixar de ser quem sou, no meio de tanta mudança. Se não somos onde moramos, o que fazemos e quem amamos, somos o quê? Restará alguma coisa de nós?
Mudei e as palavras de Angelica Schuyler ecoam em mim, constantemente: Nice going, Angelica, he was right / You will never be satisfied. Alguma vez me contentarei ou procurarei incansavelmente um caminho que nunca vou encontrar? Decisões certas? Erradas? Moedas ao ar, cara ou coroa. Um dó li tá. Fechar os olhos. Contar até 31.
Mudei e, ao mesmo tempo, há uma brisa fresca que me empurra. Tudo dói, mas a dor impele-me a continuar. Vou-me redescobrindo por mim, à procura do resultado dos 20 anos e da consolidação de três décadas. O horizonte é inspirador e dou passos em frente. Tímidos, mas sem parar de continuar. Volto ao musical Hamilton em busca de inspiração e, no momento, troco Angelica pelas palavras de Hamilton: There’s a million things I haven’t done / But just you wait, just you wait. Fecho os olhos e conto até 31. Devagar. Olho em volta e vejo onde estou. Abano a cabeça, mudo a perspetiva. Dispo-me de medos. Há tanto de mim para descobrir. Há tanto de mim para completar neste puzzle. Just you wait.
Eu, pessoa que viveu 29 anos num 7º andar, me confesso. Sou miúda senhora de grandes voos – gosto da vista do horizonte, de planos picados e de contemplar o mundo. Claro que, quando a roupa cai do estendal, a opção pelas alturas pode ser problemática, sobretudo quando são as cuecas vermelhas que ficam presas no estendal do vizinho de baixo de 80 anos. De resto, viver dezenas de metros acima do chão é uma maravilha.
Este ano, tudo mudou. Do 7º andar, passei para um rés-do-chão. Precisemos: um rés-do-chão subido. Mas não deixa de ser um rés-do-chão. E, aos poucos, percebi que há mais do que aparenta nestas mudanças de andares. Pequenos detalhes ignorados que fazem toda a diferença, com impacto no quotidiano. Claro que as pessoas do chão se rirão destas preocupações – dirão que é business-as-usual da malta rasteira. Mal sabem que, para as pessoas dos pés no ar, este é um processo de habituação doloroso. E aposto que nunca pensaram no quão vergonhoso pode ser pedir as cuecas vermelhas de volta ao vizinho de baixo.
Curiosos? Eis o que alguém que vive num rés-do-chão tem de enfrentar.
1. Bichos, criaturas e demónios de muitas patas
Ok, esta seria óbvia. Mas nunca é demais relembrar. Há muitos bicharocos que atormentam a vida de quem habita um rés-do-chão. Pela calada, vão ocupando a casa a partir dos cantinhos inacessíveis e das frinchas da porta do terraço. Tal qual um Alien a invadir a nave-mãe, é importante não menosprezar os estragos que estas pequenas criatura trazem.
E que estragos, perguntam vocês? Sobretudo à minha sanidade mental. Imaginam o drama de quem vai pôr a máquina a lavar às 23h (aproveitar a tarifa bi-horária, minha gente, nunca esquecer!) e dar de caras com uma temível centopeia? Ou de quem acorda e encontra um rasto de formigas a preparar trincheiras para invasão completa do terreno inimigo cozinha? Não é fácil!
Manual de sobrevivência: Nunca ser apanhado desprevenida e nunca baixar a guarda. Eles estão lá. SEMPRE. Portanto, o melhor é ganhar rotina a olhar para os pequenos cantos e ter sempre algo à mão…. para os transportar gentilmente para um terreno feliz, cheio de arco-íris e divertimentos bug-adapted a quilómetros de distância da nossa casa!
2. Janelas abertas? Fechadas? Assim-assim?
Ainda estou pouco habituada a esta proximidade desafiante com o solo… e, sobretudo, com os transeuntes que caminham por esse solo. Confessemos: viver num 7º andar sem nenhum prédio em frente dá-nos um sentimento de impunidade poderoso. Sabemos que, se quisermos, podemos andar nus pela casa, com um ananás na cabeça, a cantar e a fazer a coreografia da Maria Leal. Até podemos acabar por não o fazer, mas só a ideia desta possibilidade é poderosa.
Por isso, é realmente perturbadora esta ideia de que qualquer pessoa pode ter um vislumbre do nosso quarto, da nossa sala e de qualquer outra divisão com janelas para a rua (a sério, há alguém que tenha tido a ideia peregrina de instalar uma janela com vista para a rua num WC?). A ausência de privacidade desvanece as fronteiras entre espaço público e privado e, dadas as circunstâncias, dançar despida ao som de Maria Leal mais facilmente seria um peepshow para os vizinhos do que um momento privativo de loucura.
Mesmo num rés-do-chão subido, a questão é frequente: deixa-se a persiana aberta e assume-se que este é o palco de um Big Brother lá do bairro? Fecha-se a persiana e vive-se na penumbra constante, sem sequer saber o tempo que faz lá fora? Ou assim-assim, com uma frincha de persiana aberta, para dar luz natural suficiente (e um vislumbre do que se passa lá em casa aos vizinhos)?
Manual de sobrevivência: Cortinados, obviamente. O que leva à preocupação 2.1: Tecido translúcido para deixar entrar a luz (o que continua a permitir olhares alheios)? Tecido opaco? Ou assim-assim?
3. Quem ouve vozes não vê caras
Podiam ser almas penadas, a vaguear sem destino pelos corredores lá de casa. Daquelas que puxam os pés dos vivos, mudam os objetos de lugar e murmuram ao nosso ouvido para nos enlouquecer. Mas não. Infelizmente.
Viver num rés-do-chão é ouvir muitas vozes, mas de origem bem menos fantasmagórica. Isto porque qualquer conversa tida na rua é ampliada para o interior, sobretudo quando os decibéis sobem e a emoção escala. Não há janela dupla que sirva de barreira ao drama humano, sobretudo quando o tema são discussões ou cusquice pura.
Portanto, e aos poucos, os segredos da rua vão-se sabendo. É como um puzzle comportamental e social, na verdade. Ah, quem está a falar agora é a Dona Lurdes, de quem o Senhor Abílio estava a dizer mal há três dias. E com quem está ela a falar? Ah, com a Ti Luísa, claro. E agora perguntem-me… como é que são estas pessoas? Não faço ideia, continuo a lutar com a persiana aberta ou fechada (ver preocupação 2) e, portanto, raramente os vejo.
Mas como é isto uma preocupação? Primeiro, não estou minimamente interessada na vida dos vizinhos cá da rua e transeuntes ocasionais. Depois, estas vozes do além bairro ecoam, frequentemente, ao pé da janela do meu quarto. E eu gosto muito de dormir. E de dormir sem ser interrompida por estes diálogos corriqueiros. Chamem-me esquisita.
Manual de sobrevivência: Tampões para os ouvidos, auscultadores ou seguir a velha máxima do ‘junta-te a eles’. Ou seja, abrir de repente a janela a meio de uma conversa alheia e juntarmo-nos ao falatório: Pois é, senhor Manel, essa dor nas costas pode ser sinal de algo bem mais grave. Também tem manchas cor-de-rosa ao lado do umbigo? Algo assim, sem aviso e que demonstre bem que estamos plenamente a par da conversa. Das duas uma: ou acabam-se de vez as conversas ao lado das nossas janelas ou ganhamos novos amigos. Não sei se valerá a pena tamanho risco.
Por outro lado, esta preocupação é também uma vantagem. Tão resguardada andava eu no 7º andar que nunca me apercebi quanto nos expomos quando conversamos na rua. Quanto de mim saberão as pessoas do rés-do-chão desta Lisboa e arredores? Nunca fiando, o melhor é nunca falarem demais junto de janelas alheias. Ou, em alternativa, pronunciem bem alto frases mirabolantes e perturbadoras. Qualquer coisa como isto: O que é isto?!? Está ali um crocodilo azul gigante a atacar quem sai do Café Central? FUJAM!
O melhor desta profissão são as pessoas. Dei por mim a repetir isto tantas vezes, de sorriso tonto – embevecido – no rosto, ao longo dos anos. Gosto de fazer perguntas. Mas, sobretudo, gosto das respostas, de ouvir cada palavra. E, naquele momento em que a confiança ultrapassa a barreira de defesa, gosto das frases francas e com cheiro a alma.
O melhor desta vida são as pessoas. É a isto que me agarro agora. Lembro-me da Dona Esmeralda, que me recebeu este fim-de-semana em Monsaraz e, no meio dos afazeres do hotel, me ia dando a conhecer vislumbres da sua vida. Danada da mulher, sempre com resposta na ponta da língua, timbrada naquele cante falado alentejano. Fiz-lhe perguntas sem ter uma história em mente – não há artigos à tua espera numa página de revista, porque continuas a fazer perguntas, Marisa? Mas as palavras teimam em brotar e a história desenrola-se na minha mente. Deviam ter-nos avisado, naquele primeiro ano de Faculdade, que o ‘bichinho’ nos corrói o cérebro para sempre.
O melhor do jornalismo foram as pessoas. As entrevistas bem conseguidas. Os meios antes de chegar aos ‘fins’. O nervosismo antes das ‘grandes’, a autenticidade emocionante das ‘pequenas’. O ver o mundo pelos olhos dos outros….e a responsabilidade de não trair esse mundo pelas nossas palavras. O perigo da citação é grande e o seu uso requer tanta ponderação.
O melhor… foram. Passado. A minha carteira profissional de jornalista expirou em junho. Foi apenas um ponto final formal numa relação presa pelos arames. É um adeus que custa, que arde a alma e que leva consigo os sonhos de uma catraia que queria contar o mundo. Esperemos pelos novos desafios.
As pessoas, essas, levo-as sempre comigo. As que me contaram as suas histórias, as que desabafaram, as que choraram e as que sonharam para o meu bloco de notas. Sonhos. “Tenho em mim todos os sonhos do mundo”, escrevia Fernando Pessoa Álvaro de Campos. O que serão os meus sonhos sem o carimbo de “jornalista” e o gravador na bagagem? A miúda de 20 anos choraria perante a pergunta, eu encolho os ombros e sorrio. Neste fim-de-semana de despedida à profissão, a Dona Esmeralda mostrou-me mais do que algum dia lhe poderei explicar. As pessoas ficarão sempre. E as histórias. Há tantas histórias por encontrar, contar e recontar. Caduquem-se as carteiras de jornalistas, ficam as perguntas. Ficam as mãos que devaneiam a redigir letras. Fico eu. Ficam as pessoas. O melhor desta profissão. O melhor desta vida.