Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Em banho café

29.Jan.20

Anos 90 | E o tamagotchi amarelo?

Tenho uma dificuldade crescente em fazer contas de subtração a partir de 20. Más-línguas dirão que é por ser formada em Ciências Sociais. Mas a verdade é que esta limitação, digamos assim, apenas se verifica nas contas aos anos. Que é como quem diz: não consigo perceber como é que “há 10 anos” se refere a 2010 e não 2000. Ou até 1995. E como é que, tirando 10 a 2020, não estamos no final dos anos 90.

A matemática parece simples, mas é uma ilusão na simplicidade. A aritmética – desprovida de sentimentalismos – é rígida na contagem dos anos que passaram tão rápido que faltou saborear – e guardar “para mais tarde recordar”. Ainda me lembro quando, nos primeiros anos de trabalho, uma colega me disse, em tom de brincadeira, que um emprego faz o tempo passar a contrarrelógio. Que exagero, pensei. Hoje, com 34 anos, dou-lhe razão.

De tanto correr de prazo em prazo, de um projeto para o próximo, o presente dá lugar fixo ao horizonte do que aí vem. E do que vem a seguir a esse. Corremos atrás do oásis e quase não olhamos pelo rio que brota ao nosso lado.

Não que os meus anos 20 – aqueles que atravessaram as duas primeiras décadas do milénio – fossem esquecíveis – ou maus. Mas passaram rápido. Tão rápido como aquele concerto pelo qual esperaste meses. Ou como a paisagem vista lá de cima, na montanha-russa. Fechas os olhos um segundo, tentas olhar outra vez. E já passou.

 

Em nome da lua, juntam-se o Tamagotchi, a VHS e os patins

Continuo as contas… “ora, há 10 anos disseste tu” … e, em vez dos primeiros anos como jornalista, o meu cérebro insiste em prestar-me flashbacks da minha infância e adolescência. À primeira vista, parece uma espécie de doença rara cujos sintomas são uma obsessão pelas Spice Girls e Britney Spears em início de carreira. Oooh baby baby. O mais provável é que seja simplesmente um ripostar inconsciente contra as corridas sucessivas dos 100 metros em que se tornou a vida de adulta: Ai queres viver num frenesim de adrenalina? Toma lá a nostalgia da infância.

Perguntas-me, agora com insistência, “diz lá onde estavas há 10, 15 anos? O que fazias? Quem eras?”. Recuo novamente aos anos 90. Tudo em mim é uma amálgama de cores, cheiros e sensações. Vejo-me a andar de patins vermelhos 4 rodas pela alcatifa dos corredores. Vejo a fita quase gasta das minhas VHS preferidas gravadas diretamente da TV – Indiana Jones e a Última Cruzada, Robin Hood, Star Wars: Episódio V –, a tal ponto que sabia (e ainda sei?) as falas de cor.

Vejo o Tamagotchi amarelo, que andava comigo para todo lado sob pena de deixar morrer a pobre criatura virtual. Vejo as Navegantes da Lua e a eterna discussão com as amigas sobre quem era quem. Mas também vejo uma miúda marrona, caixa-de-óculos, sedenta de mundo, que devorava livros com medo de que se escapassem por entre os dedos como a vida de adulta se lhe escaparia, um dia.

Sacudo a cabeça. Respondo. “Há 10 anos? Olha, tinha acabado de pedir a minha carteira de jornalista estagiária. Era 2010. Uma crise pairava sobre nós todos…”

22.Jan.20

Um dia as palavras morreram

A boa filha à casa torna. Passou um ano, quatro meses e 18 dias desde que parei por estas andanças do Em Banho Café. Sem vergonha, porque os abrigos das letras servem para as ocasiões e não seguem as cadências do relógio, do calendário ou da agenda. O tempo passa e os abrigos das letras permanecem, à espera do convite informal: “olha, sei que não falávamos há uns tempos, queres ir tomar café?”. E lá aparecem, disponíveis e imutáveis, à espera de ouvir o que contam os nossos contos e desabafos.

Hoje saiu-me isto. E retomei o contacto. O “Em Banho Café” cá estava, à minha espera. 

 

Um dia as palavras morreram.

Organizaram-se vigílias, depositaram-se flores embebidas em tinta de caneta.

Preparam-se missas silenciosas e condolências sentidas,

Emudecidas no verbo.

Ocas na voz.

 

Um dia as palavras morreram.

Enfranzinaram-se, mirraram, embruteceram. Consta que implodiram.

Oxidaram sílabas e dissolveram ditongos,

Enlearam o disfemismo no eufemismo.

E o figurativo corroeu-se no real.

 

Um dia as palavras morreram

E o texto, que tinha virado frase, que tinha virado letra, virou pó.

E o pó esterilizou o mundo.

 

Um dia as palavras morreram.

À falta de oxigénio, sufocaram no meu peito. Extintas.

À falta de coragem, desistiram. Vãs.

 

Um dia as palavras morreram, ponto final.

 

*Estava prestes a publicar este post quando li a notícia da morte do Terry Jones, dos Monty Python. Não consigo pensar em nada mais cruel para um génio criativo das palavras do que sofrer de uma demência que o impede de falar e compreender a linguagem; do que perceber que realmente "as palavras morreram". As tuas palavras vão fazer-nos muita falta, Terry. Obrigada por teres feito o mundo mais feliz.