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Em banho café

04.Set.18

Não dá mais... não sou eu, és tu!

 

Foi um investimento de anos. Um compromisso sério, com votos renovados semana a semana. Pensei que era para a vida, confesso, mesmo sabendo que, do teu lado, um dia haveria um ponto final. Mas nada me preparou para o que aí vinha. Eu tentei, juro que tentei. Tentei aguentar os golpes, as frases sem sentido e os bocejos que, a pouco e pouco, tomaram de assalto o entusiasmo inicial. Tentei mesmo, querida série, mas não dá mais. O problema não sou eu, és tu.

 

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Se gostam de séries, o problema é-vos certamente familiar.

Qual seriólico à procura de um ponto de conforto que só a ficção pode garantir, apaixonam-se por um episódio piloto promissor, são arrebatados pela poesia em forma de argumento e conquistados de vez por um lote de personagens digno de pertencer à vossa família.

 

Contudo, depois das expetativas elevadas, o tempo leva a melhor. Tudo desmorona: o argumento fica fraquinho, as personagens deixam de fazer sentido e até a banda sonora parece mais apta a servir a primeira parte do concerto de estreia do primo mais novo do Tony Carreira (o único da família que ainda não lançou uma carreira musical de sucesso). Sim, está mau. Sim, está terrível. Mas a verdade pavorosa é que ainda não estamos propriamente prontos para desistir desta relação. Há algum conselheiro amoroso que possa acudir?

 

Depois, começa a vergonha pública. Grande parte das pessoas à nossa volta apercebe-se do que está a acontecer e tenta avisar-nos do desastre eminente. Mas nós – que remédio – continuamos a tentar fingir que está tudo bem, que o período de amor continua. Para não perdermos a pose, vamos ainda mais longe na conversa: recomendamos a série, com redobrado entusiasmo e promessas vãs de como a série está *engolimos em seco* ainda melhor do que no início. E pronto, num segundo de teimosia empenhamos toda a nossa credibilidade e reputação como “especialistas” no mundo das séries televisivas. Foi tudo ao charco, nesta mistura de amor e ego ferido.

 

Cabisbaixos, voltamos a casa e pegamos no comando. É conformismo. É uma esperança cega de que tudo melhore. É dia de novo episódio.

 

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A partir daqui, há quatro caminhos possíveis nesta encruzilhada das relações (em série) falhadas:

 

Opção A: se investimos até aqui, continuaremos até ao fim. 

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O amor também se desgasta, mas é aqui que as verdadeiras relações são postas à prova, certo? Por mais que o entusiasmo inicial passe, há um certo carinho e conforto que nos acolhe a cada episódio. Há uma familiaridade com as personagens que nos alimenta a alma. Há centenas de horas investidas que temos de respeitar. E, verdade seja dita, trata-se de aguentar até o dia do cancelamento (a não ser que se trate de Anatomia de Grey).

 

Opção B: não há como um amor para esquecer outro.

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Sejamos francos, esta é altura de engolir o orgulho e despedir-nos com dignidade do nosso passado – negando a pés juntos que alguma vez investimos naquela relação. Com tantos amigos (que é como quem diz Netflix, NOSplay, TV Séries, HBO, FOX, AXN, etc) alguém rapidamente se oferecerá para fazer um arranjinho. E, com sorte, será a série-amor da nossa vida. Aquela com a qual mais nenhuma se poderá comparar. Ou, então, será apenas mais um falhanço na lista de relações condenadas. Nada melhor do que tentar.

 

Opção C: o Lado Negro é o caminho.

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Nada está mais perto do amor do que o ódio. Quando a relação desaba e damos por nós a revirar olhos para o pequeno ecrã, é fácil abraçar o Lado Negro da Força e, rancorosamente, decidir odiar todas as séries. “Já não temos idade para nos apegarmos a histórias ficcionais”, suspiramos, enquanto transferimos energias para as aulas de Zumba no ginásio. É sol de pouca dura. Depois da ira contra o mundo televisivo, rapidamente recebemos um e-mail da Netflix para quebrar o silêncio embaraçoso: “adicionámos uma série que poderá achar interessante”. Pronto. Começou tudo outra vez.

 

Opção D: Mudaste... e eu vou ficar eternamente aqui.

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Admitamos, quantas vezes é que alguém realmente mudou – para melhor – numa relação? Este desfecho é tão improvável como encontrar ouro no quintal cá de casa, mas aquele 0,0001% de probabilidade é o último a morrer. Portanto, num cenário em que despedem metade do elenco, mudam de argumentistas e o criador da série vai para um retiro espiritual de forma a reencontrar o seu Eu passado... há alguma hipótese de redenção. Nesse caso, passamos simplesmente a avisar os amigos: “vejam, mas ignorem a temporada 4”. E, caso dúvidas existissem, vemos o mundo com otimismo, sorrimos por tudo e por nada e exibimos orgulhosos as olheiras profundas. O amor regressou e não nos deixa indiferentes.

 

No meu baú pessoal de relações falhadas, Once Upon a Time (Era Uma Vez) ganha lugar de destaque. Sim, reconheço. Nada de bom poderia vir de uma série com uma Branca de Neve com menos carisma do que a minha mesa da cozinha e efeitos especiais roubados diretamente à programação do Hallmark. Que querem que vos diga? O amor é cego... e demora até ter prescrição do oftalmologista.

 

Mas há pior. E aquele amor que é perfeito, mas estraga tudo no último segundo? Quase como um noivo que, no dia do casamento, revela que o Jar Jar Binks é a sua personagem favorita de Star Wars. Sim, refiro-me a Dexter e Lost. E a tantas outras que nos roubaram o coração – mas nos fazerem abandonar, pelo próprio pé, o altar. Mas esse é tema para um texto futuro.